A humildade de Jesus e o orgulho dos cristãos

Viver a humildade corresponde a viver não se colocando em posição superior a nada nem a ninguém, mas no mesmo nível.

05 de Março de 2018

 

Por Felipe Magalhães Francisco*


Na piedade católica, muito se repete um mantra-oração: Jesus, manso e humilde de coração, fazei de nosso coração semelhante ao vosso. Tal prática de piedade, tão comum em rezas do terço e momentos de adoração ao Santíssimo Sacramento, tem inspiração bíblica. A humildade de Jesus é um convite a ser assumido por cada discípulo e discípula: “[...] aprendei de mim, pois sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29). A palavra humildade ganhou um uso recorrente, em nossa semântica cotidiana, de simplicidade. Fala-se que os pobres são humildes; que os sem estudo são humildes. Esse uso tem sua razão de ser, quando ampliamos o alcance interpretativo de tal palavra.

Humildade e humilhação são duas palavras muito próximas, etimologicamente. Ambas estão intimamente ligadas a húmus, terra, chão. Os empobrecidos e empobrecidas, então, estão nessa situação de humildade-humilhação: rebaixados em sua dignidade, estão ao chão. Para além desse lugar usual possível, para a palavra humildade, interessa-nos, aqui, refletir a partir de outro lugar, que também se radica no contexto etimológico da palavra: húmus. Curiosamente, também a palavra homem, do latim homo, pertence à mesma família da palavra húmus. Para um cristão, a associação com a narrativa bíblica do Gênesis é inevitável. Do barro, do chão, Deus modela Adão, que, literalmente, significa o terroso.

Tornar-se humildade, nesse contexto, corresponde a assumir uma virtude. Esse é o ponto de partida, aliás, da espiritualidade quaresmal. Na quarta-feira de cinzas, celebração em que é dada a largada para o caminho de conversão em preparação à Páscoa, católicos e católicas são marcados, em suas frontes, com cinza, enquanto são exortados: “Lembra-te que és pó, e que ao pó hás de voltar”, em clara referência bíblica. Bonita a dimensão simbólica de tudo isso: ao assumir o caminho de converter-se, isto é, de voltar para Deus numa mudança de mentalidade, é preciso perceber qual lugar ocupamos na vida, diante de nós mesmos, dos outros e de Deus. Ser humilde significa, então, não dar para si uma importância maior que a que realmente se tem. Não se trata de modéstia, definitivamente, mas de reconhecer a si mesmo, num processo profundamente espiritual, de dar-se o valor que realmente se tem.

 

Importante a associação com a palavra húmus: no pó, a identificação de nossa pertença à criação. Da terra, essa mãe-sustento, nasce nossa participação em igualdade de importância com todo o mundo criado. Nem mais nem menos importantes. Recordar de nossa pertença ao chão, ao pó, isto é, ser humilde, é assumir nosso lugar no mundo, em relação a ele e a tudo o que nele contém. Viver a humildade corresponde, então, a viver não se colocando em posição superior a nada nem a ninguém, mas no mesmo nível. É preciso que não nos esqueçamos do que significa o pecado: arrancar nosso rosto humano para buscar assumir um lugar que não nos pertence, que é o de querer ser como deuses. Em outras palavras: o pecado é a nossa desumanização, o nosso esquecimento-negação de que somos terra.

 

Jesus, que para os cristãos e cristãs é o paradigma da humanização, ensina-nos o que é verdadeiramente assumir um lugar existencial que transparece humildade. Não se colocou superior a ninguém, mas, ao contrário, rebaixou-se ao ponto de poder elevar quem também estava ao chão. É o que faz na ocasião em que a mulher iria ser apedrejada, quando acusada de adultério: Jesus vai ao chão e, lá, no lugar dos humilhados, põe-se a escrever na terra. Os acusadores, mesmo confrontados com os próprios pecados, são incapazes de se curvarem numa postura humilde (cf. Jo 8,1-11). Essa narrativa exemplifica toda uma postura de vida, assumida por Jesus.

 

Ela manifesta, aliás, toda a teologia da kénosis. Jesus não se apega à sua condição divina, mas se esvazia para assumir a condição de servo. Humilhou-se ao ponto de assumir a morte de cruz, para prestar um serviço à humanidade (cf. Fl 2,5-8). Assumindo a vida humana, o Filho de Deus participa de nossa condição terrosa. E é de lá, da terra, do chão, que nos eleva à condição de filhos e filhas de Deus; que nos possibilita sermos elevados à participação na santidade divina, por pura graça. Quando a santidade divina visita o mais íntimo e profundo de nós, alcançando-nos desde a terra, na encarnação do Filho de Deus, somos chamados a assumir nossa dignidade, reconhecendo o que verdadeiramente somos e o que, por graça, somos chamados e levados a ser: plenamente humanos.

 

Diante de tudo isso, deveria causar estranheza o fato de que cristãos e cristãs cedam ao orgulho. Há uma terrível e real tentação, dentro e fora das igrejas, de que cristãos e cristãs se comportem como se fossem melhores que outras pessoas, inclusive melhor que aqueles e aquelas com as quais lida na vida comunitária. Cristãos e cristãs devem ser melhores para os outros e, jamais, pretenderem-se melhor que os outros. A vaidade cristã só nos afasta do Reino, porque desfigura o lugar propriamente cristão que é o do serviço. “Entre vocês não deve ser assim: ao contrário, aquele dentre vós quiser ser grande, seja o servidor [...]” (Mc 10,43) é um imperativo colocado por Jesus a cada discípulo e discípula: aos passos do Mestre, estamos no mundo para servir e não para ocupar lugares de importância que sequer temos direito. 

 

 Assumir a humildade tal como a do coração de Jesus é tarefa espiritual necessária, se queremos nos assumir como cristãos e cristãs, discípulos e discípulas de Jesus. A humildade é virtude necessária e irrenunciável àqueles e àquelas que pretendem ser fiéis à missão dada por Jesus, de anunciadores e promotores do Reino de Deus. Descer ao chão, para lá tocar as situações de humilhação, de indignidade, de pecado é atitude urgente para aqueles que querem ser sinal fecundo do Reino. A religião cristã não é aquela composta pelo puros e santamente afastados: mas daqueles que, imersos na terra do mundo, irradiam humanidade, escrevendo ao chão, para solidarizar-se com quem precisa ser tocado pela libertação própria do Reino de Deus. Percorrer o caminho da humildade é compreender que, fora do chão, lugar concreto onde a vida se dá, não há salvação.

 

*Felipe Magalhães Francisco é teólogo. Articula a Editoria de religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). Escreve às segundas-feiras. E-mail: [email protected].

 

 

Fonte: http://www.domtotal.com

 

 

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